sábado, janeiro 5

Rita

Estou tomando um sorvete de palito e quase terminando. Eu prefiro sorvete em massa. O que eu não gosto nos sorvetes de palito é justamente o que irá acontecer a seguir: quando você está no fim, ele costuma se quebrar. E o meu se quebra em quatro pedaços. Estou tentando segurar os quatro pedaços gelados com minhas duas únicas mãos e a campainha toca. Preciso atender. Coloco os pedaços de sorvete no bolso da minha camisa.
Atendo a porta e, sem surpresas, é a Rita Lee. Ela começa se desculpando — e eu presumo que seja pelo seu atraso. Considerando que eu havia esquecido que ela viria me visitar, digo que não tem problemas. Eu não tenho nem tempo de pedir para que ela entre comigo até a sala de visitas: Rita já abaixou para se sentar num degrau próximo ao meu portão. E eu sento ali com ela.
Rita vai direto ao assunto — quer que eu seja o diretor de seu próximo show. Diz que foi indicada por Marisa Monte. Eu tento me esquivar. Não sei o que a Marisa disse sobre mim mas eu não tenho experiência com a direção. Começo a explicar que talvez eu possa conduzir a produção. Rita me dá ânimo. Começa a dizer que também trabalhou em algumas coisas não relacionadas à música antes de entrar para Os Mutantes. Eu brinco "aos doze anos?".
Rita já se desculpou três ou mais vezes e ela faz isso de uma forma camarada e masculina. As desculpas delas parecem sinceras mas sem emotividade. Ela não queria tomar meu tempo mas não vai derramar lágrimas para provas suas desculpas. Ela só repete constantemente que sente muito. Eu penso em quebrar o gelo e lembro do sorvete no meu bolso. Ofereço um palito para Rita e ela aceita. "Qualquer sabor".
Vou até meu freezer e não encontro o sorvete que queria oferecer a Rita. Encontro alguns de uva mas eles são simples. Queria lhe oferecer um daqueles picolés recheados, iguais ao que eu tomava antes dela chegar. Estou tentando impressionar Rita com sorvete. Vou oferecer um de coco.

quarta-feira, janeiro 2

Criança prodígio

Inflada no ego. Estava lendo revistas antigas e uma matéria falava sobre Je vous Salue, Marie, um filme que Jean-Luc Godard escreveu e dirigiu aos 55 anos. Nele, Godard recria a história da concepção divina entre Maria e o Espírito Santo nos dias atuais. Sua Maria é uma jovem jogadora de basquete que após revelar sua gravidez é acusada pelo namorado José, um taxista, de traição. O filme é descrito como "forte, polêmico e interrogativo".
Então engole essa, monsieur Godard: eu tive idéia semelhante aos doze anos. Naquela máquina de escrever Olivetti do meu pai eu datilografei uma história onde Maria era uma garçonete promíscua. Não recordo o meu José. Essa história, assim como tantos outros papéis que datilografei, estão espalhados por cantos da casa. Cantos e fundos. Fundos de arquivos, armários, caixotes, da casa em si.

O fato é: tive um dia cansativo. Só queria mostrar que eu fui uma criança que tinha um futuro brilhante.