domingo, outubro 12

Atleta

Não há uma quadra, não usamos uniformes e nem o tempo está cronometrado. Desde o último intervalo — quando nos reunimos e discutimos as táticas para ganharmos o jogo — muito tempo já decorreu. O time cansado. Poucos pontos.
Não é um jogo de basquete, mas poderia ser. Daqueles em que, a determinada hora, você percebe seu colega com a bola, analisa se a sua posição é favorável e acena, pedindo a atenção dele. "Confie em mim e me passe essa bola" você quer gritar, mas, se o fizer, a atenção de todos é voltada contra você e a tática, então implícita e benéfica, pode perder sua função.
Eu me encontrei nessa situação uma vez. Explicitei as táticas e deixei a atenção cair sobre mim. Minha participação foi confundida com "estrelismo". Agora, novamente, estou nessa situação. Espero pelo passe. Braços acenam "confie em mim, confie em mim". Mas observo enquanto a bola é jogada para trás, na direção de outro jogador, depois outro e outros. Minha participação é diminuída, apesar da minha posição e da minha disposição a aprender com minhas decisões por vezes mal executadas, ainda que bem intencionadas. Fico chateado, porém diminuo minhas queixas por completo: eu posso não estar recebendo qualquer passe, mas acredito que posso ser útil ao time.
Não estou num jogo, mas minhas emoções transitam entre extremos em poucos minutos, como as de um jogador. Animado, temeroso, esperançoso, frustrado, satisfeito, angustiado. Suplico pelo tempo para discutirmos nossas táticas; só a lógica é capaz de aliviar todo o abatimento causado por tantas emoções desse jogo confuso. Mas nenhuma pausa é feita. Controlo minhas emoções, relembro as táticas combinadas no começo da partida e continuo me dedicando ao jogo.
Não é um jogo de basquete, não haverá ganhadores ou perdedores, sequer o jogo chegará ao fim. Eu retomo os votos feitos ao brasão que veste meu peito e não abandono o time. Com suor, sangue e lágrimas eu torço e luto por nosso sucesso. E tento recordar que aquilo é um time e somos todos responsáveis, juntos, por nossas vitórias e derrotas. Trago do inglês a lembrança de que "There's no 'I' in 'team'". E continuo jogando, até que precisem de mim, confiem em mim e me passem a bola.

domingo, maio 25

Pejo

Bêbados. Viúvos. Solteironas. Moderninhos deslocados. Casais estranhos. Uma noiva numa despedida de solteira com as amigas. Um bar numa noite de karaokê. Coisa antiquada que trouxe cada um aqui através de um atrativo diferente. Os bêbados querem ficar imperceptíveis entre a platéia. Os viúvos, chorar mágoas e ressentimentos. As solteironas, cantar Roberto Carlos e Celly Campelo. Eu. Eu quero subir naquele palco. Sentir o calor do holofote fazendo minha face corar ainda mais. Gesticular com graça a falta de graça na minha voz. Quero meu rosto enquadrado no telão. Deixar que as pessoas enxerguem minha testa suada, minhas rugas amareladas, meu dente escurecido.
Todos que sobem ali querem, no fim das contas, a mesma coisa: serem vistos, expostos. Dividir a atenção com o cenário brega é uma ambição degradante, mas pior é a frustração de ficar sentado, assistindo o show dos outros. É como voltar aos momentos de tosquice da infância e sentir-se de novo o último escolhido para jogar bola com os meninos da rua. Fazer parte do time de cantores da noite pode parecer estúpido, eu sei, mas não fazer parte de time algum é ainda pior.
Hoje eu não cantei. De novo. Uma vez por semana eu vou nessa noite de karaokê e, até agora, tenho ido sozinho. Não é fácil encontr Bem, que mentira. Eu nunca chamei ninguém para ir numa dessas noites comigo porque ainda estou entendendo a dinâmica do lugar. Quanta mentira. Eu sei como funciona o bar. Eu não chamei ninguém porque ainda estou (aprendendo, acho) aprendendo a rir de mim mesmo. Ou você acha que eu não compartilho da sua opinião? Karaokê é antiquado e brega. Vexaminoso. As fitas laminadas amarradas por todo o salão constituem, por si só, uma piada. Portanto eu vou sozinho. Ninguém sabe, mas nas noites de quinta eu canto nesse bar.
Não, não canto. De verdade, canto, mas só, só, da minha mesa. O palco eu ainda não pisei. Tudo tem seu tempo e eu tenho meu tempo para aprender a rir de mim e dessas vontades esdrúxulas. Subir no palco, desinibido, e entreter aquela gente estranha parece algo fácil de fazer, mas puta passo difícil de tomar. Já cheguei a colocar meu nome na lista, mas acabei deixando que me chamassem. Duas, três vezes, até passarem para o próximo da fila. Fui tomado por um frio na barriga e fiquei ali no canto do salão escuro, vermelho.
Escovo os dentes, durmo, trabalho, escovo os dentes. Sete vezes e aqui estou escolhendo uma camisa colorida. Vai ser hoje: resolvi cantar Chico Buarque. Uma ânsia a semana toda parece ter me impulsionado para mais uma quinta-feira. Chega desse vai-não-vai. (Não consigo pensar qual cor de camisa vai me destacar nas bexigas amarelas do salão) Vou subir no palco e mostrar que posso ser uma pessoa que ri de si mesmo. Tem algo doentio em querer tanto se exibir, mas o que mais posso fazer? Ficar sentado é fácil demais para alguém tão interessante quanto eu. Quem sabe. Talvez eles gostem da minha voz. Ou talvez eu conquiste todos com um certo carisma.
Do carro eu vejo as luzes apagadas no salão acima do que, de dia, é uma peixaria. Descontente, vou até o papel que diz "Não darei continuidadi ao Karaokê-bar. Obrigado. Vanuza". Que saco. Frustrante, entende? (Além dos erros gramaticais no papel, o meu, de adiar a coisa toda) Eu finalmente estava pronto para cantar. Dei tempo ao tempo mas o tempo se perdeu. Nada para fazer nesta quinta-feira. Dobro minha camisa para guardá-la na gaveta mas o cheiro forte do perfume ficou preso nela. Amasso ela num cesto junto com minhas meias e escovo os dentes. Depois durmo. E depois trabalho.

sábado, abril 19

No corpo

Pode ser inexperiência em conceituar ou pura exaltação de um hedonismo sensorial mas eu continuo a abolir — com distinta alegria — a única (otimismo?) característica que me diferencia de um macaco: a razão.
Amor, ódio, fidelidade, traição, alegria, tristeza, coragem, vergonha. A lista de sentimentos a serem conceituados é enorme. E graças a deus minha língua-mãe é o português porque aqueles alemães têm ainda mais palavras denominando sentimentos.
Eu gosto de sentir. Não nego a razão, a intuição ou qualquer classificação advinda da memória, mas os cinco sentidos explicitam meus sentimentos com muita clareza. E isso acaba sendo extremamente útil para alguém que adora questionar a credibilidade dos fatos, da memória e de uma única perspectiva.
O mundo é mutável (e você deve interpretar o mundo dessa frase tanto na sua abordagem cósmica quanto cotidiana). Então, porque os sentimentos deveriam ficar arquivados em pastas? Se o desdém de cinco minutos fica simpático após uma dose de tequila e vira sua amada esposa em cinco anos... Digo: se uma dose de álcool consegue transmutar seus sentimentos, o que há de errado em arrancar deles suas características imutáveis e começar a subjetivá-los através dos cinco sentidos?
Sabe aquele "amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente" do Camões? Todo mundo adora o jogo dualista de sensações porque a conclusão a que se chega ao final do poema é: não é possível caracterizar o amor. Quando, de fato, é. E a gente faz isso o tempo todo. Explicar isso usando o temível Amor é o exemplo mais fácil: imagine uma linha bem comprida onde um extremo é o amor e, o outro, indiferença. Quem nunca nutriu apatia por uma namorada que tanto amou? E quem, depois disso, não viu esse sentimento completamente oposto ao primeiro se tornar alguma coisa que estaria se equilibrando no meio dessa linha?
Sentimentos são mutáveis e cada sentimento em particular se expressa de diversas formas. Isso não é quantificá-los pela intensidade com que são expressos. E antes que a necessidade de justificativas vire uma fuga no desenvolvimento desse post eu retomo às sensações físicas.
Freud denominou por id os impulsos que buscam a satisfação imediata. Chegou até a comparar o id a um cavalo selvagem que é domado e regrado pelas convenções morais impostas e aceitas pela sociedade. Esse cavalo não obedece às leis da lógica então é possível que existam impulsos contraditórios sem que um anule a existência do outro. Quando transfigurados ao campo sensorial, esses impulsos são compreendidos através dos cinco sentidos. A classificação e a teorização deles são importantes para entender o que sentimos, mas e quando a gente começa a priorizar a subjetividade e simplesmente esquece de sentir? É como saber que nessa xícara a minha frente tem café preto sem açúcar e escolher entre duas direções: sentir o gosto do café, seu aroma e textura ou analisar a virilidade implícita em tomá-lo quase amargo, e imaginar o quanto os efeitos da cafeína respondem pela minha personalidade.
O tal hedonismo sensorial deve ser destacado junto à razão. Gosto de acreditar que o meu corpo é capaz de explicar o que meu cérebro demoraria anos para compreender. A angústia pode ser percebida em diferentes pessoas como um trauma de infância mal resolvido ou a incapacidade em aceitar uma doença incurável. Para mim, a angústia é uma dor de estômago. Simples assim. O medo é a perna direita começando a ficar bamba e a coragem é a perna esquerda dando suporte para a perna direita retomar o passo. A compaixão são os olhos lacrimejando quando minha amiga contou sobre a quinta sessão de quimioterapia que sua tia está fazendo e o amor é um abraço de quarenta e cinco segundos.

sábado, janeiro 5

Rita

Estou tomando um sorvete de palito e quase terminando. Eu prefiro sorvete em massa. O que eu não gosto nos sorvetes de palito é justamente o que irá acontecer a seguir: quando você está no fim, ele costuma se quebrar. E o meu se quebra em quatro pedaços. Estou tentando segurar os quatro pedaços gelados com minhas duas únicas mãos e a campainha toca. Preciso atender. Coloco os pedaços de sorvete no bolso da minha camisa.
Atendo a porta e, sem surpresas, é a Rita Lee. Ela começa se desculpando — e eu presumo que seja pelo seu atraso. Considerando que eu havia esquecido que ela viria me visitar, digo que não tem problemas. Eu não tenho nem tempo de pedir para que ela entre comigo até a sala de visitas: Rita já abaixou para se sentar num degrau próximo ao meu portão. E eu sento ali com ela.
Rita vai direto ao assunto — quer que eu seja o diretor de seu próximo show. Diz que foi indicada por Marisa Monte. Eu tento me esquivar. Não sei o que a Marisa disse sobre mim mas eu não tenho experiência com a direção. Começo a explicar que talvez eu possa conduzir a produção. Rita me dá ânimo. Começa a dizer que também trabalhou em algumas coisas não relacionadas à música antes de entrar para Os Mutantes. Eu brinco "aos doze anos?".
Rita já se desculpou três ou mais vezes e ela faz isso de uma forma camarada e masculina. As desculpas delas parecem sinceras mas sem emotividade. Ela não queria tomar meu tempo mas não vai derramar lágrimas para provas suas desculpas. Ela só repete constantemente que sente muito. Eu penso em quebrar o gelo e lembro do sorvete no meu bolso. Ofereço um palito para Rita e ela aceita. "Qualquer sabor".
Vou até meu freezer e não encontro o sorvete que queria oferecer a Rita. Encontro alguns de uva mas eles são simples. Queria lhe oferecer um daqueles picolés recheados, iguais ao que eu tomava antes dela chegar. Estou tentando impressionar Rita com sorvete. Vou oferecer um de coco.

quarta-feira, janeiro 2

Criança prodígio

Inflada no ego. Estava lendo revistas antigas e uma matéria falava sobre Je vous Salue, Marie, um filme que Jean-Luc Godard escreveu e dirigiu aos 55 anos. Nele, Godard recria a história da concepção divina entre Maria e o Espírito Santo nos dias atuais. Sua Maria é uma jovem jogadora de basquete que após revelar sua gravidez é acusada pelo namorado José, um taxista, de traição. O filme é descrito como "forte, polêmico e interrogativo".
Então engole essa, monsieur Godard: eu tive idéia semelhante aos doze anos. Naquela máquina de escrever Olivetti do meu pai eu datilografei uma história onde Maria era uma garçonete promíscua. Não recordo o meu José. Essa história, assim como tantos outros papéis que datilografei, estão espalhados por cantos da casa. Cantos e fundos. Fundos de arquivos, armários, caixotes, da casa em si.

O fato é: tive um dia cansativo. Só queria mostrar que eu fui uma criança que tinha um futuro brilhante.

domingo, dezembro 30

Sing-a-long fever

Somebody call the Snow Patrol!


Até tento escrever mais.

sábado, dezembro 29

Silent movies










In your face, Chaplin.

quarta-feira, dezembro 26

Dublagem de Befana

Take 1


Take 2


Take 3


Na lista de musas que atuaram em cenas constrangedoras temos Scarlett Johansson para Woody Allen, Uma Thurman para Tarantino e Penélope Cruz para Almodóvar. E agora Le para Zanchetta.

O que não comer

Irmão: Mãe, existe amendoim branco?
Mãe, na cozinha: ...............
Pai: Agora você é segregacionista?

quarta-feira, fevereiro 7

Autor

Vinte e uma horas e o relógio dourado marca nove horas dentro de uma caixa de madeira com um visor de vidro empoeirado. O relógio marca o tempo com um tiquetaque barulhento que não é alto o suficiente nem para abafar o jazz tocando ao fundo das vozes barulhentas das pessoas que estão na noite de assinaturas do novo livro de Rodolfo Paz Klava. O autor de "Alagoas" está vivenciando a idéia maçante que tinha sobre a noite de hoje: oito amigos seus rodeados por desconhecidos e aspirantes à escritores, repórteres e artistas plásticos que bebem e discorrem sobre suas relações pessoais com políticos e artistas famosos. Seu livro acaba de ser lançado após ter sido guardado sob um sistema de proteção rígido. E, mesmo que essas pessoas tivessem lido o livro, elas ainda prefeririam estar falando da vida tão reservada do autor.
Rodolfo conhece políticos e artistas famosos. Seus maiores amigos, entretanto, são os instrumentistas que não são citados entre os assuntos da noite de assinaturas por serem ainda mais reservados que o primeiro. Com eles Rodolfo compartilha o prazer das notas musicais bem tocadas. As palavras são cantadas mas para um apreciador vivaz da melodia elas ficam sempre em segundo plano. O mesmo plano em que se encontra ###, editor de "Alagoas", que — imitando sua posição na festa — não ultrapassa seus limites em qualquer conversa nessa noite e permanece ofuscado.

quarta-feira, julho 19

Sete da manhã

A sensação que o quarto expressou em mim era de viscosidade. Aquele ambiente enlameava meus olhos em tons de bege; das cortinas ensolaradas aos contornos de madeira que se estendiam pelos rodapés até os cantos. O padrão do desenho do papel de parede esticando-se até o teto na tentativa de roubar-lhe um lustre pequeno mas chamativo porque feito com cristais esverdeados. Qualquer um iluminava-se facilmente ali.

terça-feira, julho 11

De Escrever

Hoje eu vou falar sobre herança com meu pai. Quero a máquina de escrever.
Eu não sei o que significa computador, a palavra; mas sei o que significa máquina de escrever. É evidente. O cheiro da máquina de escrever do meu pai é cheiro de palavras nascendo.
Quando criança eu estendia dois colchonetes lado a lado num canto da sala. Colocava um banquinho de madeira a minha frente e sobre ele uma Olivetti Studio 44 verde, de metal pesado, onde prensei minhas primeiras palavras.
Não se digitava, datilografava. Mas o que nós fazíamos mesmo era "bater os textos" à máquina. As teclas eram tão pesadas quanto a máquina e nenhuma letra estava ali por estar. Um descaso, um menor esforço e a letra não aparecia na folha. E as teclas eram barulhentas mas formavam uma música pois as palavras surgiam com ritmo. Desafiar com a voz esse ritmo era cansativo. Fazia-se silêncio e respeitava-se o texto, como respeita-se o fadista em execução.
Os erros faziam parte do texto. As fitas corretivas nunca apagavam os erros sem revelar pistas de sua ausência e os parágrafos desnecessário eram deixados na folha, riscados com uma Bic e abandonados para talvez, posteriormente, mostrarem-se úteis.
Eu preciso dessa máquina.